“Eu sei que vou chorar
a cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou.”
(Eu sei que vou te amar - Tom Jobim)
Tentava
inutilmente driblar os buracos nas calçadas. Mas o salto, o vestido
justo e o passo apressado complicavam ainda mais o trabalho. Na boca,
seu melhor batom vermelho. Na cabeça, uma decisão. Incômoda,
pesada, mas a qual estava disposta a dar vazão ainda naquela
madrugada. Há algum tempo carregava aquela inquietação. Foi
justamente quando acabaram a graça, a grana, a fantasia, o êxtase,
a cerveja, o samba. Já não dormia, não acompanhava a novela da
tarde, não ria com as amigas. Mas naquela noite estava decidida.
Carregava o pouco suficiente para não titubear na hora “h”.
Foram muitos os ensaios. Vestido, salto e batom. A faca, uma garrafa
e o velho punhado de chaves. Era a mesma garrafa de sempre. Para
esses momentos de dúvida uma garrafa sempre lhe parecia ajudar,
embora nunca o tivesse feito. Já havia ensaiado aquela cena fazia
semanas e uma garrafa estava sempre lá, companheira, finalizada na
covarde e decepcionante volta pra casa. A faca era novidade. Nas
outras tentativas nunca trouxera uma faca, ou arma, ou coisa que o
valha e nem bem sabia mesmo dizer porque diabos a pegou na mesa da
cozinha na hora da saída. Talvez fosse o desconforto da tamanha
decisão. E, finalmente, as chaves. Ah, as chaves! As chaves eram a
cereja do bolo. Não podiam faltar. Eram suas relíquias guardadas em
baú, no altar, sobre o pedestal durante todo aquele tempo. Tudo ali
eram alegorias naquela noite de estreia, depois de tantos ensaios.
Naquela
madrugada de sexta-feira, jogou-se na rua como de costume e por
ofício. Mas como disposta a levar a cabo sua decisão, estava
embebida de fúria e determinação. Seus passos firmes como nunca,
em marcha confiante. Há muito, era a primeira vez que lhe acontecia
daquela maneira. Nos últimos tempos, as noites só lhe traziam
qualquer coisa sem lhe medir gosto ou pedir opinião, lhe cabendo
apenas esperar e receber. Mas naquela noite era diferente. Naquela
noite ela escolheu seu destino. Atravessou ruas, sinais fechados,
entre carros, driblou mesas, bares e homens. Não via ninguém,
nenhum rosto, assovio ou chamado que lhe pudesse desviar do seu
destino, como era de costume. Pela garrafa quase vazia já trazia a
cabeça pesada e latejante. Tinha sede. Devia ser a proximidade da
chegada. Seu destino estava ali, na outra esquina. E ainda restava
uma dose de bebida e de definição. Na porta do 1104 a chave custou
a entrar. Por um segundo teve mais sede e medo e pânico de ter
errado a chave, a porta, a rua, o vestido, a garrafa, a noite, a
decisão. Mas girou a chave e entrou.
Subiu
as escadas com ainda mais sede e só com uma gota de bebida e de
decisão. Outra chave, outra porta, mais sede e um lampejo de receio.
Já não havia determinação. Foi sendo deixada pelo caminho
juntamente com o batom, o salto, a garrafa, pelas calçadas, buracos
e ruas, sinais vermelhos, mesas e bares, chamadas e assovios, entre
as portas, na escada. Mas girou a chave e entrou.
Ele,
sentado no sofá, envolto de garrafas vazias, de olhos fixos e
marejados, um tanto espantados e outro tanto aliviados, esperava
ansioso há semanas aquelas cortinas se abrirem para o maior
espetáculo da sua vida. Ela, de pé, com as pernas trêmulas e a
cabeça pesada, engoliu seco e finalmente largou aquela faca e se
jogou naquele corpo como quem se joga à estreia do maior espetáculo
da sua vida.
-Porra,
que saudade,
Quanta
demora,
amor!
-Me
beija,
mata
logo a minha sede
e
me perdoa,
por
favor!
Muitooooo bommmm mesmoooo!
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