sexta-feira, 4 de julho de 2014

Noite de estreia



Eu sei que vou chorar
a cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou.”
(Eu sei que vou te amar - Tom Jobim)



Tentava inutilmente driblar os buracos nas calçadas. Mas o salto, o vestido justo e o passo apressado complicavam ainda mais o trabalho. Na boca, seu melhor batom vermelho. Na cabeça, uma decisão. Incômoda, pesada, mas a qual estava disposta a dar vazão ainda naquela madrugada. Há algum tempo carregava aquela inquietação. Foi justamente quando acabaram a graça, a grana, a fantasia, o êxtase, a cerveja, o samba. Já não dormia, não acompanhava a novela da tarde, não ria com as amigas. Mas naquela noite estava decidida. Carregava o pouco suficiente para não titubear na hora “h”. Foram muitos os ensaios. Vestido, salto e batom. A faca, uma garrafa e o velho punhado de chaves. Era a mesma garrafa de sempre. Para esses momentos de dúvida uma garrafa sempre lhe parecia ajudar, embora nunca o tivesse feito. Já havia ensaiado aquela cena fazia semanas e uma garrafa estava sempre lá, companheira, finalizada na covarde e decepcionante volta pra casa. A faca era novidade. Nas outras tentativas nunca trouxera uma faca, ou arma, ou coisa que o valha e nem bem sabia mesmo dizer porque diabos a pegou na mesa da cozinha na hora da saída. Talvez fosse o desconforto da tamanha decisão. E, finalmente, as chaves. Ah, as chaves! As chaves eram a cereja do bolo. Não podiam faltar. Eram suas relíquias guardadas em baú, no altar, sobre o pedestal durante todo aquele tempo. Tudo ali eram alegorias naquela noite de estreia, depois de tantos ensaios.


Naquela madrugada de sexta-feira, jogou-se na rua como de costume e por ofício. Mas como disposta a levar a cabo sua decisão, estava embebida de fúria e determinação. Seus passos firmes como nunca, em marcha confiante. Há muito, era a primeira vez que lhe acontecia daquela maneira. Nos últimos tempos, as noites só lhe traziam qualquer coisa sem lhe medir gosto ou pedir opinião, lhe cabendo apenas esperar e receber. Mas naquela noite era diferente. Naquela noite ela escolheu seu destino. Atravessou ruas, sinais fechados, entre carros, driblou mesas, bares e homens. Não via ninguém, nenhum rosto, assovio ou chamado que lhe pudesse desviar do seu destino, como era de costume. Pela garrafa quase vazia já trazia a cabeça pesada e latejante. Tinha sede. Devia ser a proximidade da chegada. Seu destino estava ali, na outra esquina. E ainda restava uma dose de bebida e de definição. Na porta do 1104 a chave custou a entrar. Por um segundo teve mais sede e medo e pânico de ter errado a chave, a porta, a rua, o vestido, a garrafa, a noite, a decisão. Mas girou a chave e entrou.


Subiu as escadas com ainda mais sede e só com uma gota de bebida e de decisão. Outra chave, outra porta, mais sede e um lampejo de receio. Já não havia determinação. Foi sendo deixada pelo caminho juntamente com o batom, o salto, a garrafa, pelas calçadas, buracos e ruas, sinais vermelhos, mesas e bares, chamadas e assovios, entre as portas, na escada. Mas girou a chave e entrou.


Ele, sentado no sofá, envolto de garrafas vazias, de olhos fixos e marejados, um tanto espantados e outro tanto aliviados, esperava ansioso há semanas aquelas cortinas se abrirem para o maior espetáculo da sua vida. Ela, de pé, com as pernas trêmulas e a cabeça pesada, engoliu seco e finalmente largou aquela faca e se jogou naquele corpo como quem se joga à estreia do maior espetáculo da sua vida.




-Porra, que saudade,
Quanta demora,
amor!


-Me beija,
mata logo a minha sede
e me perdoa,
por favor!



Um comentário: