segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Música urbana*


*Para Lica



"E você ainda acredita que é um doutor, 
padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social."
 
Ouro de tolo - Raul Seixas



Tinha as meias surradas como sola a pisar a calçada suja e fria. Nas mãos, um velho par de tênis. Por que diabos um homem com um par de sapatos na mão anda por aí esfolando os pés no chão? Pensei do alto da minha filosofia barata que devia poupar o calçado para as horas de maior necessidade, porque o que está ruim sempre pode piorar. Me olhou e estendeu a mão.


O trocado era para completar o café mas preferiu guardar os dois reais no bolso da calça esfarrapada. Minha filosofia surrada suspeitou que ele certamente compraria algo que pudesse esquentar ainda mais o estômago oco além de um mísero gole de café, numa hora de ainda mais aperto. Nos sorrimos e ele se foi.

...

Procurei pela quadra. Queria saber quanto calçava e comprar-lhe um par de sapatos. Minha filosofia oca insistia: Para alguém que vive de andar e vagar e correr, o que são os pés e meias e sapatos senão a distância entre a vida e a morte todos os dias? No lugar onde o tempo da cidade e a distância das ruas correm à sua revelia, sem percebê-lo, sem importar-se ou se alterar em sua virtude, ter os sapatos intactos pelas noites solitárias deve fazer toda a diferença.  

Seria muito mais por mim que por aqueles pés. Afinal, em dia tão próximo os sapatos novos certamente já estariam tão apodrecidos quanto as meias e os pés. Que diferença faria? Faria aquilo muito mais por mim. Para me sentir menos oca e fria. Muito mais para afagar um pouco minha consciência surrada e miserável de quem tenta se convencer todos os dias que merece os sapatos bonitos que escolhe e veste, o carro que passeia e o café que paga e toma e dispensa quando não se agrada.

...

Seu pouso foi o meio da calçada. Aquela mesma, suja e fria. Bem no meio que é pra neguinho ter que olhar e desviar. Minha filosofia estúpida adivinhava com ares de certeza que a escolha daquele lugar o fazia sentir-se menos invisível. Que estando ali, ocupava, ao menos uma vez, um espaço nesse mundo onde tivesse gente de verdade. A cabeça sobre os sapatos não deixava dúvidas: além de disfarçar um pouco a dureza das pedras, os sapatos eram mesmo sua preciosidade. Estavam protegidos dos outros pés esfolados que vagam por ali. Um saco preto cobria-lhe o rosto desagradável. As mãos cruzadas na barriga subiam e desciam em ritmo lento, dando a parecer uma respiração tranquila, embora minha filosofia esfarrapada especule que quem vive nas ruas durma de sobressaltos, de um olho só.

...

Em fuga envergonhada de volta pro carro merecido e miserável, não tive coragem de tocar naquele homem e incomodar-lhe aquele descanso tão ralo e raro e perguntar-lhe o número dos pés só para redimir um pouco minha alma oca, rota e fria. 

...

Do sapato e do carro e do café e do resto não me convenço. Mas se há uma coisa bem merecida nessa vida rala, segundo minha filosofia de dois reais, é certamente a falta de um lugar onde deitar os pesos da minha consciência miserável. Para isso, merecidamente, não há pouso nem descanso. 


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