segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Uma esquina, o atraso, rosas e nada mais




"Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios
No ar."
Futuros Amantes - Chico Buarque 



Estava atrasada havia uns vinte minutos. Sempre o tempo ideal para reconsiderar. De pé na outra calçada da avenida barulhenta, enquanto olhava o letreiro de neon, um filme lhe invadia a cabeça. Ali estava mais uma vez. Quantas vezes naqueles últimos meses? Ou seriam anos? Já não sabia ao certo. O tempo perdera o sentido depois daquele desacerto na sua vida, quando abandonou em fim o uso sistemático dos relógios. Porque nada mais fazia sentido, nem ela própria, nem a própria vida, tudo tão sem sentido nos últimos tempos. Nenhum compromisso nem lágrima, mágoa, tampouco algum sorriso. O tato, a visão, o olfato, tudo nela se mantinha intacto. Do mesmo modo seguia o seu coração, ritmado, sem sobressaltos.

Mas naquela noite estava ali, naquela calçada da avenida barulhenta, frente a possibilidade de pôr o sangue a ferver. Mesmo se escondendo, desviando dos homens (e também de mulheres), dos assovios desconhecidos, das investidas dos colegas, era constantemente e irritantemente assediada para encontros. Não fazia força, estava condenada à arte de seduzir. E desde aquele desacerto, aquele de dias, meses ou anos, fugia de armadilhas. Não correria o risco de abalar sua saúde coronária, de sofrer taquicardia, infarto, de ressuscitar, afetar o olfato e a razão. Mas aqueles vinte minutos, naquela calçada, foram feitos para reconsiderar. Jamais aceitaria aquela afronta do destino. Trabalhara duro até ali para despir-se de qualquer necessidade que viesse de outro alguém. Convivia indolente com as ausências de domingo, o silêncio no chuveiro, o vazio na geladeira, na mesa e na cama.

E então, não. Não seria a essa altura, em uma noite qualquer de descuido que cairia desavisada naquela armadilha. Depois de tanto tempo e tanto empenho em secar lágrimas, esquecer juras, se livrar das lembranças dos cheiros, da pele e dos pelos, dos gostos e temperaturas e curvas e sons e ... agora que já tinha jogado as caixas no lixo, que já novamente espaço nas gavetas e no armário. Não seria ali, naquela noite despretensiosa, travestida de propostas e risos inocentes, beijos ardentes, naquela mesa de bar do outro lado da calçada da avenida barulhenta.

Não faria aquelas viagens, nem retratos, não abraçaria aquela outra família, não se mostraria tão amável e querida, não deixaria saudades nas tias, nada disso contaria com sua presença nem seu perfume. Nunca saia bem nas fotos mesmo e, de um modo geral, não gostava de tias alheias. Não depositaria ali sua energia. Histórias contadas despretensiosamente em outro pé do ouvido, tirariam de outra a cumplicidade dos sorrisos embaraçados. Porque já nem sabia mesmo sorrir e sentia um incômodo no hálito assim tão próximo à nuca. Os olhares atentos e vibrantes não seriam os seus. Não sentiria aquela sensação do inesperado, nem o frio no estômago e as pernas trêmulas. Nada de coração a saltar pela boca, nem do alívio do próximo telefonema. Não receberia rosa alguma. Manteria o vaso de vidro para sempre desacompanhado sobre a mesa, no centro daquele imenso e deserto apartamento. Não dividiria finalmente aquela garrafa de vinho no tapete da sala, entre músicas, risos, lembranças da infância, de delírios e sonhos futuros. Se embriagava era mesmo sozinha e quando, e só quando isso acontecia, rolava no tapete, se agarrava às almofadas e, escondida de si mesma e de luz apagada, dançava atrás das cortinas. Nada de anéis, roupas enlaçadas no armário e contas, espaços e lençóis e cães e peixes e fluídos compartilhados. As conversas intermináveis debaixo do chuveiro, o silêncio acompanhado e confortável sobre a cama. Nada disso. Menos ainda as brigas inúteis ou as vitais, e nem mesmo a reconciliação inevitável repleta de desejo e excitação.

Definitivamente, ela não vai àquele encontro. Decidiu que desafiaria o destino e não daria a menor chance para qualquer fagulha de sorte. Seu coração, vestido, brincos e saltos atravessariam a cidade em outra direção. Seria rápido, indolor, apático, como nas outras vezes. Um passo atrás, meia volta e logo dobrava a esquina para abraçar, mais uma vez, mais uma noite de solidão. O rapaz ainda esperaria alguns quinze minutos na mesa do restaurante, terminaria seu
drink, iria embora e nada mais. Ela não permitiria que uma inofensiva primeira noite se transformasse em cobranças, dores e decepções. Ou, ainda pior, em mais telefonemas, promessas, vinho, rosas e, quem sabe, a felicidade. Mas com as ruas, as noites e o relógio do destino não se brinca. São surpreendentes, obstinados, (sacanas!), incrivelmente pontuais quando se trata de seus estratagemas.

O moço do encontro estava igualmente atrasado uns vinte minutos e virava aquela mesma esquina, naquele mesmo instante. Surpreendente, obstinado, (sacana!) e precisamente pontual para as artimanhas do coração. Naquela avenida barulhenta, com um sorriso embaraçado, baixou a cabeça, ajeitou de lado os cabelos e ofereceu-lhe, despretensiosamente, seu pé do ouvido. Desafiando aquela moça, ele trazia um buquê de rosas na mão.


Futuros Amantes - Chico Buarque


***

Esse post vem sob encomenda. Andaram sentindo falta de mais amor por aqui. E tinham razão.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Um plano para chorar





A tempestade passou. Veio de longe, com previsões de tornado até o amanhecer. Seu estrago foi grande. E você fez planos. E eu bem sei que você não gosta de planos. Mas vinha uma tempestade. E vinha fazer estragos.

E quando ela chegou e você pôde chorar, não impediu esse rio de sal a escorrer pelo pescoço, a encharcar a pele levando com as águas as dores da tua alma. 

Eis teu plano para chorar.
Não fechou a casa, nem escavou buracos. Não procurou abrigos, não se guardou (e eu bem sei que você se esconde). Quando o rio insistiu em correr seu curso natural, aceitou seus desígnios. Deixou que o vento gélido lhe cortasse o rosto e lhe cobrisse de soluços e suspiros e empurrasse toda a água a levantar telhados, arrastar casas e vidas e gente. 

Enquanto a tempestade desabou e a correnteza lhe escorreu na pele, pela face, pescoço, inundando a clavícula, por entre os seios até o umbigo, lhe carregando para junto dela, pensou em tudo que era levado, destruído e lavado. Não evitou (e eu bem sei que você se esquiva). Aceitou, em quietude, os seus propósitos. 

E depois, só depois que você pôde chorar, e que o céu azul se abriu e o sol voltou e esse rio secou, pôs-se a caminhar por entre telhas, cacos, entulhos e lamas, a procura de abrigo e de um amigo. A buscar nos escombros os restos da tua alma perdida, para então recomeçar. Mas só depois que você pôde chorar (e eu bem sei que você nunca chora).