sábado, 30 de agosto de 2014

1994




Seus nomes se confundiam nas vidas de quem chegava. Brincos e roupas se misturavam por entre gavetas, festas, dias e noites. Assim como os sonhos, ódios, lágrimas e amores. O mundo era mágico e não cabia no planeta. Procuravam um grande disco voador. Decoravam o nome de cada estrela, para quem sabe um dia navegar. Abraçavam árvores, trocavam energias e cristais. Dividiram os primeiros cigarros e porres escondidos e as primeiras grandes quedas. Nessas horas, o vinil tocava “menina do anel de lua e estrela” e se uniam então seus pés, cabelos e braços, gargalhadas, risos e abraços. Foram tantos tropeços, danças e saltos. Mil anos se passavam naqueles poucos. Naquela cidade de frio e neblina, as meninas irradiavam o calor das almas gêmeas. A vida era para sempre. Seu amor também. Os cabelos coloridos, as bolsas atravessadas e as calças boca-sino guiavam seus passos. Passos errados, engraçados e corrigidos, compassados. E sempre companheiros. Quando o tempo de cada uma chegou, era noite e já era tarde. Hora de voltar para casa. A mãe chamou, a brincadeira acabou. Perderam-se em estradas distantes e também daquele amor. Aquele mesmo, que durou para sempre naqueles poucos anos. E hoje à tarde, mil anos depois, era aquele mesmo som do vinil a ecoar na minha cabeça de menina...





quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Na estação com Rimbaud




Tudo fiz para que se desvanecesse
em meu espírito a esperança humana.
Como um animal feroz,
investi cegamente contra a alegria para estrangulá-la.”
Uma estação no inferno - Artur Rimbaud




Ela sentia que já era hora de morrer.


Tinha a carne cansada,
todo o verbo derramado,
sem nada mais de si
que ainda pudesse aproveitar,
nem um sopro de ar.
Já gastara tudo que tinha.
Já dera de si qualquer coisa
que o mundo pudesse usar, 
ou jogar fora, ou sei lá.



Nem saliva não havia
que desfizesse os nós da garganta seca,
a umedecer a língua áspera e solitária.
Nem suor que limpasse os poros
das toxinas dessa noite,
e que tirasse dela todo o dejeto mental
intruso e indesejado.
Nem uma gota limpa de sangue
a conduzir o ar puro
que invadia sólido suas narinas.
Nem uma lágrima sequer
que lhe descolasse as opacas retinas
e lavasse da alma suas culpas e medos.



Já podia lamber o chão
Comer o pão cuspido e amassado
Sentir a carne queimar
E o peito dilacerado
Deixaria pesar os olhos
Até toda a luz se anular.


Agora já podia morrer
e desfalecer nesse céu escuro,
flutuar bem devagar,
e se deixar deslizar,
como um espírito liberto 
até essa dor passar...



É que tem essa dor.
Ela quase esqueceu de te dizer
que tem essa dor aí.
Onde não restava mais nada,
na verdade tem essa dor.
Uma dor que se fingiu de sopro,
entrou involuntária e intrometida,
secou a garganta,
forjou a língua em pedra,
entupiu-lhe os poros,
poluiu o sangue e o ar,
secou toda lágrima.
Essa dor bem aí.
Mas ela passa, não passa?
Diz pra ela que com a morte
a dor passa!!!
Diz!!!


Porque se essa dor
não for acabar assim,
ainda que sem pressa
e bem devagar,
então para ela
nem o chão
nem o pão
nem os nós
nem as pedras
nem o sangue
ou a seca
e nem mesmo a morte servirá...






segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Música urbana*


*Para Lica



"E você ainda acredita que é um doutor, 
padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para nosso belo quadro social."
 
Ouro de tolo - Raul Seixas



Tinha as meias surradas como sola a pisar a calçada suja e fria. Nas mãos, um velho par de tênis. Por que diabos um homem com um par de sapatos na mão anda por aí esfolando os pés no chão? Pensei do alto da minha filosofia barata que devia poupar o calçado para as horas de maior necessidade, porque o que está ruim sempre pode piorar. Me olhou e estendeu a mão.


O trocado era para completar o café mas preferiu guardar os dois reais no bolso da calça esfarrapada. Minha filosofia surrada suspeitou que ele certamente compraria algo que pudesse esquentar ainda mais o estômago oco além de um mísero gole de café, numa hora de ainda mais aperto. Nos sorrimos e ele se foi.

...

Procurei pela quadra. Queria saber quanto calçava e comprar-lhe um par de sapatos. Minha filosofia oca insistia: Para alguém que vive de andar e vagar e correr, o que são os pés e meias e sapatos senão a distância entre a vida e a morte todos os dias? No lugar onde o tempo da cidade e a distância das ruas correm à sua revelia, sem percebê-lo, sem importar-se ou se alterar em sua virtude, ter os sapatos intactos pelas noites solitárias deve fazer toda a diferença.  

Seria muito mais por mim que por aqueles pés. Afinal, em dia tão próximo os sapatos novos certamente já estariam tão apodrecidos quanto as meias e os pés. Que diferença faria? Faria aquilo muito mais por mim. Para me sentir menos oca e fria. Muito mais para afagar um pouco minha consciência surrada e miserável de quem tenta se convencer todos os dias que merece os sapatos bonitos que escolhe e veste, o carro que passeia e o café que paga e toma e dispensa quando não se agrada.

...

Seu pouso foi o meio da calçada. Aquela mesma, suja e fria. Bem no meio que é pra neguinho ter que olhar e desviar. Minha filosofia estúpida adivinhava com ares de certeza que a escolha daquele lugar o fazia sentir-se menos invisível. Que estando ali, ocupava, ao menos uma vez, um espaço nesse mundo onde tivesse gente de verdade. A cabeça sobre os sapatos não deixava dúvidas: além de disfarçar um pouco a dureza das pedras, os sapatos eram mesmo sua preciosidade. Estavam protegidos dos outros pés esfolados que vagam por ali. Um saco preto cobria-lhe o rosto desagradável. As mãos cruzadas na barriga subiam e desciam em ritmo lento, dando a parecer uma respiração tranquila, embora minha filosofia esfarrapada especule que quem vive nas ruas durma de sobressaltos, de um olho só.

...

Em fuga envergonhada de volta pro carro merecido e miserável, não tive coragem de tocar naquele homem e incomodar-lhe aquele descanso tão ralo e raro e perguntar-lhe o número dos pés só para redimir um pouco minha alma oca, rota e fria. 

...

Do sapato e do carro e do café e do resto não me convenço. Mas se há uma coisa bem merecida nessa vida rala, segundo minha filosofia de dois reais, é certamente a falta de um lugar onde deitar os pesos da minha consciência miserável. Para isso, merecidamente, não há pouso nem descanso.