quarta-feira, 25 de junho de 2014

O dia mais lindo


Fitava seus pés. E abaixo deles, o abismo.

O penhasco era profundo, desses de não se ver onde vai dar, de encostas rochosas cobertas de relva, de um claro caminho que seduz e convida a entrar.


Fitava seus pés e o abismo.
O vento era doce, desses de brincar com os cabelos e os pelos, de bagunçar o vestido, de levar embora pesadelos e medos, de trazer com ele o frescor da manhã. 


Fitava seus pés e o abismo. 
O cheiro era suave, desses de um aspirar intenso e com um largo sorriso, de lembrar das coisas boas da infância, da casa da avó, das frutas no pé, do inocente amor que nasce entre primos.


Fitava seus pés e o abismo. 
O céu era impassível, desses que convidam a voar, planar, girar e bailar, de atravessar mares e oceanos, escalar montanhas, que levam longe, pra qualquer lugar que se queira chegar.


Fitava seus pés e o abismo. 
O sol era afável, desses que cobrem o corpo com ternura e carinho, que aquecem a alma, oferecem um cochilo na grama e no colo do amigo, que confortam as pálpebras já no primeiro raio da manhã.


Fitava seus pés e o abismo.
O dia era o mais lindo, desses que não se quer acabar, de ficar nas pontas dos pés, flutuar, abrir os braços, olhar o abismo e saltar.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Imperfeições. (ou, “Arranca um pedaço e sê inteira”).





 
Revirava gavetas. Abria e fechava portas. A procura era urgente. E tudo que encontrava ou não saía ou não entrava. A calça frouxa. A camisa justa. O chapéu largo. O sapato apertado. Faltava um número, o seu número, seu tamanho. Não entendia onde esteve todo o tempo enquanto suas coisas ou espichavam ou encolhiam. Continuava a busca porque em algum lugar alguma coisa serviria. Procurava roupas e estava nua. E nua se sentia inteira. Sem nenhum artifício que valorizasse aqui ou lá. Sem disfarces e superficialidades. Era somente ela, sua pele, seus pêlos, suas curvas, rugas e cicatrizes. Há quanto tempo não sentia suas cicatrizes... Não eram muitas, mas eram fortes e belas. Sim, achava as cicatrizes belas. Sentia um certo prazer em tê-las, cada uma com suas legendas latentes de histórias vividas. Eram suas lembranças mais belas que as da caixa de fotografias. Sentia-se viva por tê-las. Tocá-las dava-lhe um prazer diferente, desses de sentir com os olhos fechados, bem devagar e sem pressa. A pele fina, a imperfeição. Os relevos, o arrepio ao toque. Matou a saudade, olhou o espelho e entendeu que era ela que havia crescido. Cessou a busca por algo que lhe coubesse. De fato não haveria mais nada o que procurar. Nada ali lhe caberia. Nem ali nem no mundo lá fora. Bateu-lhe uma certeza de que nada em lugar algum lhe caberia naquele corpo novo de velhas e belas cicatrizes. Era preciso abrir a gaveta, pegar o cesto com agulhas, linhas e tecido e costurar por sobre o próprio corpo algo novo que lhe servisse. Mas estava nua e se sentia inteira. Foi então que olhou o espelho, sorriu, largou o cesto e, bem devagar e sem pressa, voltou a acariciar as cicatrizes.