quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Notas sobre pequenas grandes revoluções



A cada evento, sua revolução. A experiência com chás e ritos, mantras e rezas. A estreia no palco. Uma declaração de amor não correspondida. Um diagnóstico recebido. O pedido de perdão. O parto da melhor amiga. A descoberta de um irmão. A pequena cidade deixada para trás. Apenas um quarto como morada. A gestação. O nascimento do filho. O início da mãe. Quando escreveu e publicou. O parágrafo final. A fatalidade de um poema. O emprego confortável deixado pra trás. Uma tarde e um café na casa da missionária. A declaração de amor correspondida. O mestrado depois dos trinta. 

Não exatamente nessa ordem, cada um desses momentos, grandiosos ou banais, foram, na verdade, suas pequenas grandes revoluções. À primeira vista, fatos comuns. Fragmentos de uma vida qualquer dentre tantas no mundo. Mas ela sabe que não. Sabe que ali foram feitas suas pequenas grandes revoluções. Assim o foram porque dobraram sua espinha. Cavaram mergulhos profundos, reviraram o íntimo da sua alma. Tudo de novo emergia. O chão entreaberto, paradigmas estremecidos, uma grande interrogação. Revia a passagem comprada, o itinerário. Refazia a bagagem para descarregar o abstrato, o supérfluo, tudo que fosse excesso. Saía jogando o lixo fora e arrumava gavetas e limpava a casa. Quebrava correntes, erguia as armas, organizava a luta. Abria estradas, derrubava cercas e arrombava portas. Sacudia a mente, deixando cair as folhas secas. Eram momentos de replantio, de semear escolhas, ver brotar novos conceitos. Podia sorrir, chorar, espernear, fazer o diabo. Ou deitar encolhida e rezar sua prece inventada, na luz apagada para dar ouvidos ao coração. Demorava um bom tempo até se alcançar naquela sua pessoa desconhecida. Mas era mesmo questão de tempo e logo diria: “- olá, muito prazer!” Não impunemente, claro. Jamais saiu sem arranhões. Afinal, todo movimento revolucionário deixa marcas profundas. Acontece com os rios, as vilas, os governos e as gentes. Provoca rupturas, destruição de pontes e abrigos. Abre cortes e abismos. Até que o sol chegue, podem ser muitas as noites amargas de solidão. Mas naquele novo cenário, de necessária reconstrução, entendia que toda revolução era a oportunidade de ser melhor. Nunca pretensamente melhor que os outros, mas apenas a melhor versão de si mesma. Com um pouco menos de mediocridade. E nunca lhe foi preciso ir muito longe, bancar grandes viagens, investir dinheiro pesado, alçar elevadas titulações. Nem mesmo tomar decisões prévias, de justas certezas e claras resoluções. Porque, “às vezes, um gesto, uma palavra, um olhar, modificam o nosso rumo.”* E porque é de pequenas grandes revoluções que se faz o pássaro que, ao deixar o estorvo da casca, ainda sem penas, nem imagina que já já vai estar pronto para voar...



*uma frase do Frei Betto que um dia li por aí.

Far Behind - Eddie Vedder




quarta-feira, 5 de novembro de 2014

" O ópio de ser outra pessoa qualquer"



" Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não em sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo"
Insônia - Álvaro de Campos


Enquanto o relógio segue capitaneando os minutos, o tempo te arrasta pelo quarto, fazendo de ti esse pobre coitado, prisioneiro dos mil pensamentos. Ideias sem nexo, em desordem, com o cheiro de ontem, se revelam, se rebelam, donas de ti. Impulsos elétricos, vozes, zumbidos te alteram os sentidos. E teus olhos nunca se fecham. O travesseiro de pontas agudas te fere e rasga embora o teu sossego. O ar que comprime teu metro quadrado encerra no teu corpo o peso das vontades desconexas. Imagens, cada vez mais abstratas, agitadas, abusam covardemente da tua condição.

Tem uma aranha que te observa do alto do teto. É o teu voyeurismo do avesso. Agora, o rato é você.

A internet, a TV e até teus livros debocham desse teu estado. Você, (des) governado, que já foi senhor, agora não passa de escravo. Enquanto se vê mergulhado no vazio, teu sono, cada vez mais, escorre por um fio. Lá embaixo, nas ruas desertas, tem mais vida que aí. A cidade, em silêncio, tira gozo até do asfalto e tem mais vida que nesse teu quarto. Enquanto agonizas, os ponteiros irônicos disparam a proximidade do sol. Tuas paredes encolhem, te engolem e mais um dia já chegou.

A aranha já dorme tranquila enquanto sente pena de ti.

Uns goles, uns tragos, hipnóticos, qualquer trégua. Quem sabe uma chance, um meio, qualquer coisa pra te absolver.

Aí perto tem guardada uma flor. Se te resta um pouco de força e coragem, de arrasta e usa. Pode ser por infusão, compressa ou inalação. Vai te devolver melatonina, trazer o sono e encher de endorfina. Mas tem um porém, uma contraindicação: quando te livrar da insônia, levará também a tua solidão ... e isso, eu já não sei se você vai querer.