quarta-feira, 30 de julho de 2014

Exaustão



"A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço."


[...]



Tantas vezes havia buscado aquela rota, tantos dias e noites naquela única direção. Sem sucesso, mais uma vez estava lá. Nunca por esperança, mais por teimosia. Porque não aceitava a recusa, a negativa como resposta.


Irrompia placas de “proibido”. Não conhecia o fim da linha. Era ousada nas vias em contra mão. Ao menor alerta de “pare”, saltava-lhe o ímpeto de seguir em frente. Avançava sinais. Investia pesado na insistência. 


O galho mais alto. 
O fim da ladeira. 
O último degrau.
Até o último centavo. 
O mais distante, 
o profundo e saturado.
E, no apagar das luzes, 
o gole final. 


Exigia de si um infinito esforço nas coisas. Porque na vida nada vinha de graça. O que vinha não lhe apetecia. 


Nem sempre, quase nunca, raramente alcançava.
Restava farta, morta, exausta.
Mas, quase sempre e invariavelmente, 
lhe satisfazia 
o perene gosto 
de êxtase e sal e sono
e o suor 
de todo aquele cansaço...



[...]


"Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 
Ou até se não puder ser..."
Álvaro de Campos 


terça-feira, 22 de julho de 2014

Quando se usa as piores armas



De todas as maneiras
que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras
feitas pra sangrar
Já nos cortamos"
De todas as maneiras - Chico Buarque



Deve ser mesmo culpa da língua portuguesa. 
Ou do som que arranha a garganta.
As palavras com um “r” assim cortante, sempre me rasgam fundo, me dilaceram.
Torpezafardoamargor,
ardormá-sorte
corte, a morte, o dissabor.


Quem nunca sacou uma dessas assim
por defesa, desejo, instinto ou prazer
E permeou a carne alheia
até revelar as vísceras do outro
puxar de volta a palavra
esfregar na perna da calça
limpar o sangue
dar as costas
e correr?


Com a verdade é ainda mais bonito
De penetrar o outro e se manter firme
Não se ir
nem deixar pra trás
Porque a verdade, depois de sacada,
requer criar coragem
de olhar fundo nos olhos,
vestir a cara da maldade,
fincar,
girar
e esperar
a legítima agressão que virá
(ou quem sabe o choro agradecido)
É a satisfação da palavra que sai cuspida
porque o outro, sem se dar conta, implorou
É o deleite da dádiva concedida
de tudo aquilo que o outro, na inconsciência, desejou

A verdade é a liberdade dos dois.

Porque ter a carne rasgada
pela palavra bem afiada,
em meio ao espanto, ao medo e à raiva,
leva, por vezes, a um desmedido prazer...






quarta-feira, 16 de julho de 2014

Dias de ressaca




"Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar."
idades cidades divindades - Mia Couto



Vejo um mar agitado.
E monstruosas ondas que chegam, violentas.
São fortes as rajadas de vento.
Uma inundação arrasta tudo.
Minhas vistas já não alcançam o que se vai.
Carros, pessoas, cachorros. Barcos, árvores e pesca. 
São dias de ressaca.

Toda água do meu cérebro foi roubada.
Náuseas, tontura e cefaleia.
Doem a face, o fígado. Músculos e membros.
E tudo se esvai.
Força, saliva, vontade. Fôlego e pensamentos.
São dias de ressaca. 
 
Sinais de alerta soaram a tempo.
Tudo foi desprezado.
E agora tudo foi inundado.
E eu estou sendo tragada pelo mar.
E tudo está sendo levado.
Sanidade, clareza e visão.
São dias de ressaca.

...

Potássio, sódio, frutose.
Água-de-coco, uma grande embarcação.
Isotônico, helicóptero.
Glicose, antitérmicos, analgésicos.

...

Aqui em casa acabaram os comprimidos.
E lá no horizonte, essas nuvens de chumbo ainda não deixam o sol chegar...





sexta-feira, 11 de julho de 2014

Bem a tempo ( para depois de ouvir Nina Simone )



Ela chegou bem a tempo. 
Entre dezenove e vinte horas.
Bem a tempo de pular da plataforma
para dentro do vagão, 
do último trem da noite,
no momento exato da partida.

A tempo de se esconder da tempestade
de raios, tornados e trovão.
De saltar no instante da colisão.
De abrir o paraquedas
em meio à pane do motor.
De vestir o colete salva-vidas
em pleno choque da embarcação.
Apertar o botão de alarme
antes da queda do elevador.
Acionar o extintor de incêndio
no alto da construção.
Antes de findar o oxigênio
do cilindro do mergulhador.
A tempo de usar o desfibrilador
no músculo em lentidão.
De injetar adrenalina 
na iminente morte anafilática.

E, de tudo e no final,
já na alteração da consciência,
agora imóvel e estática,
de respiração rápida e artificial,
de tremores no corpo,
e de pele pálida e úmida e fria,
chegou bem a tempo
de estancar a hemorragia.

Nina Simone - Just in time



sexta-feira, 4 de julho de 2014

Noite de estreia



Eu sei que vou chorar
a cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que essa tua ausência me causou.”
(Eu sei que vou te amar - Tom Jobim)



Tentava inutilmente driblar os buracos nas calçadas. Mas o salto, o vestido justo e o passo apressado complicavam ainda mais o trabalho. Na boca, seu melhor batom vermelho. Na cabeça, uma decisão. Incômoda, pesada, mas a qual estava disposta a dar vazão ainda naquela madrugada. Há algum tempo carregava aquela inquietação. Foi justamente quando acabaram a graça, a grana, a fantasia, o êxtase, a cerveja, o samba. Já não dormia, não acompanhava a novela da tarde, não ria com as amigas. Mas naquela noite estava decidida. Carregava o pouco suficiente para não titubear na hora “h”. Foram muitos os ensaios. Vestido, salto e batom. A faca, uma garrafa e o velho punhado de chaves. Era a mesma garrafa de sempre. Para esses momentos de dúvida uma garrafa sempre lhe parecia ajudar, embora nunca o tivesse feito. Já havia ensaiado aquela cena fazia semanas e uma garrafa estava sempre lá, companheira, finalizada na covarde e decepcionante volta pra casa. A faca era novidade. Nas outras tentativas nunca trouxera uma faca, ou arma, ou coisa que o valha e nem bem sabia mesmo dizer porque diabos a pegou na mesa da cozinha na hora da saída. Talvez fosse o desconforto da tamanha decisão. E, finalmente, as chaves. Ah, as chaves! As chaves eram a cereja do bolo. Não podiam faltar. Eram suas relíquias guardadas em baú, no altar, sobre o pedestal durante todo aquele tempo. Tudo ali eram alegorias naquela noite de estreia, depois de tantos ensaios.


Naquela madrugada de sexta-feira, jogou-se na rua como de costume e por ofício. Mas como disposta a levar a cabo sua decisão, estava embebida de fúria e determinação. Seus passos firmes como nunca, em marcha confiante. Há muito, era a primeira vez que lhe acontecia daquela maneira. Nos últimos tempos, as noites só lhe traziam qualquer coisa sem lhe medir gosto ou pedir opinião, lhe cabendo apenas esperar e receber. Mas naquela noite era diferente. Naquela noite ela escolheu seu destino. Atravessou ruas, sinais fechados, entre carros, driblou mesas, bares e homens. Não via ninguém, nenhum rosto, assovio ou chamado que lhe pudesse desviar do seu destino, como era de costume. Pela garrafa quase vazia já trazia a cabeça pesada e latejante. Tinha sede. Devia ser a proximidade da chegada. Seu destino estava ali, na outra esquina. E ainda restava uma dose de bebida e de definição. Na porta do 1104 a chave custou a entrar. Por um segundo teve mais sede e medo e pânico de ter errado a chave, a porta, a rua, o vestido, a garrafa, a noite, a decisão. Mas girou a chave e entrou.


Subiu as escadas com ainda mais sede e só com uma gota de bebida e de decisão. Outra chave, outra porta, mais sede e um lampejo de receio. Já não havia determinação. Foi sendo deixada pelo caminho juntamente com o batom, o salto, a garrafa, pelas calçadas, buracos e ruas, sinais vermelhos, mesas e bares, chamadas e assovios, entre as portas, na escada. Mas girou a chave e entrou.


Ele, sentado no sofá, envolto de garrafas vazias, de olhos fixos e marejados, um tanto espantados e outro tanto aliviados, esperava ansioso há semanas aquelas cortinas se abrirem para o maior espetáculo da sua vida. Ela, de pé, com as pernas trêmulas e a cabeça pesada, engoliu seco e finalmente largou aquela faca e se jogou naquele corpo como quem se joga à estreia do maior espetáculo da sua vida.




-Porra, que saudade,
Quanta demora,
amor!


-Me beija,
mata logo a minha sede
e me perdoa,
por favor!