quarta-feira, 18 de junho de 2014

Imperfeições. (ou, “Arranca um pedaço e sê inteira”).





 
Revirava gavetas. Abria e fechava portas. A procura era urgente. E tudo que encontrava ou não saía ou não entrava. A calça frouxa. A camisa justa. O chapéu largo. O sapato apertado. Faltava um número, o seu número, seu tamanho. Não entendia onde esteve todo o tempo enquanto suas coisas ou espichavam ou encolhiam. Continuava a busca porque em algum lugar alguma coisa serviria. Procurava roupas e estava nua. E nua se sentia inteira. Sem nenhum artifício que valorizasse aqui ou lá. Sem disfarces e superficialidades. Era somente ela, sua pele, seus pêlos, suas curvas, rugas e cicatrizes. Há quanto tempo não sentia suas cicatrizes... Não eram muitas, mas eram fortes e belas. Sim, achava as cicatrizes belas. Sentia um certo prazer em tê-las, cada uma com suas legendas latentes de histórias vividas. Eram suas lembranças mais belas que as da caixa de fotografias. Sentia-se viva por tê-las. Tocá-las dava-lhe um prazer diferente, desses de sentir com os olhos fechados, bem devagar e sem pressa. A pele fina, a imperfeição. Os relevos, o arrepio ao toque. Matou a saudade, olhou o espelho e entendeu que era ela que havia crescido. Cessou a busca por algo que lhe coubesse. De fato não haveria mais nada o que procurar. Nada ali lhe caberia. Nem ali nem no mundo lá fora. Bateu-lhe uma certeza de que nada em lugar algum lhe caberia naquele corpo novo de velhas e belas cicatrizes. Era preciso abrir a gaveta, pegar o cesto com agulhas, linhas e tecido e costurar por sobre o próprio corpo algo novo que lhe servisse. Mas estava nua e se sentia inteira. Foi então que olhou o espelho, sorriu, largou o cesto e, bem devagar e sem pressa, voltou a acariciar as cicatrizes.





5 comentários:

  1. Demais Vivi. Obrigada por compartilhar tanta beleza e sentimentos.

    ResponderExcluir
  2. Só posso dizer....demais!! totalmente demais!!

    ResponderExcluir
  3. Que bom que você levou adiante este seu projeto de ter um blog, Vivi!
    Muito bonito seu texto, Vivi. Remeteu-me muito ao livro "Secreta Mirada" de Lya Luft (a Lya de outrora, que infelizmente se deixou apagar no decorrer do tempo ao assumir posturas ideológicas super reacionárias) - talvez porque em ambos haja a possibilidade de um dia olharmos/mirarmos encanto no que nos tenha causado dor (daí a "secreta mirada").
    Parabéns, amiga!

    ResponderExcluir
  4. Belíssimo. Largo e intenso. Queremos mais.

    ResponderExcluir